Microbiota e diarreia infeciosa: círculo vicioso ou virtuoso?
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DIARREIA INFECIOSA, UMA DAS PRINCIPAIS CAUSAS DE MORTALIDADE INFANTIL NO MUNDO
Aevacuação de 3 ou mais fezes soltas ou líquidas por dia corresponde à definição comum de diarreia estabelecida pela OMS.1 São necessários ambos os critérios (frequência e consistência): a evacuação frequente de fezes formadas não é diarreia, nem a evacuação de fezes soltas por bebés sujeitos a amamentação (Figura 1). Foram atribuídas à diarreia 1,6 milhões de mortes em 2016.2 As crianças encontram-se particularmente em risco: a doença diarreica é a 3.ª principal causa de morte em crianças com menos de 5 anos de idade. Uma grande parte da mortalidade costumava ser atribuída à desidratação grave associada à perda de fluidos, mas atualmente as infeções bacterianas sépticas são responsáveis por uma fatia cada vez maior de todas as mortes associadas à diarreia.1 As crianças subnutridas ou imunocomprometidas são as que correm maior risco de sofrer de diarreia potencialmente fatal, bem como as pessoas que vivem com o VIH.1
CLASSIFICAÇÃO DA DIARREIA
Existem 3 tipos clínicos de diarreia com base nos seus sintomas e duração:1
- diarreia aquosa aguda, que dura várias horas ou dias (até 14 dias) e inclui a cólera;
- diarreia sanguinolenta aguda (disenteria);
- diarreia persistente, que dura 14 dias ou mais.
A maior parte dos casos de diarreia aguda deve-se a infeções:1,3,4 a responsabilidade pode ser atribuída a um vírus, a uma bactéria ou a um parasita, mas o rotavírus e a Escherichia coli são os dois agentes etiológicos mais comuns da diarreia moderada a grave nos países de baixo nível de vida.1 O Rotavírus e a Shigella são responsáveis pelo maior número de mortes relacionadas com a diarreia infeciosa;2 este facto tem dado origem a estratégias de vacinação preventiva (ainda em desenvolvimento para a última).
Embora se tenha confirmado que certas comunidades fúngicas têm uma ligação com a diarreia, o papel dos fungos na mesma continua a ser controverso.5 Estes podem estar envolvidos em alguns contextos clínicos, especialmente em doentes imunocomprometidos mais propensos a infeções fúngicas invasivas (candidíase).6
SÍNDROMAS FISIOPATOLÓGICOS DA DIARREIA
Do ponto de vista clínico, os agentes patogénicos diarreicos podem causar 2 síndromas fisiopatológicos:4
- Diarreia não inflamatória (DNI): os doentes apresentam náuseas, vómitos, fezes aquosas e volumosas e cólicas abdominais resultantes da secreção intestinal (a mucosa intestinal permanece intacta). Esta doença mais moderada é geralmente viral (Rotavírus, Norovírus...) mas também pode ser bacteriana (Escherichia coli enterotoxigénica, Clostridium perfringens...) ou parasitária (Giardia, ...);
- Diarreia inflamatória (DI): os pacientes apresentam febre, dor abdominal, tenesmo e fezes sanguinolentas de menor volume do que na DNI. Este quadro grave da doença é geralmente causado por estirpes bacterianas invasivas ou produtoras de toxinas (Shigella, espécies de Salmonella...) que levam à rutura da barreira mucosa e à destruição dos tecidos.
NOS BASTIDORES DA DIARREIA: A MICROBIOTA
CÍRCULO VICIOSO: QUANDO A DIARREIA LEVA À DISBIOSE INTESTINAL
A diarreia infeciosa é considerada como um evento disbiótico importante resultante de:
- aumento dos movimentos intestinais e interrupção da integridade da mucosa, 3
- aumento da presença de água na matéria fecal e redução do tempo de trânsito, o que contribui para a escassez taxonómica, 3
- e eventual reidratação oral, suplementos de zinco, probióticos e até mesmo antimicrobianos (no caso da disenteria ou de infeções bacterianas) que também contribuem para um desequilíbrio da microbiota intestinal.7
Dependendo do tipo de infeção, as diarreias infeciosas são geralmente acompanhadas por estados disbióticos:7 A diarreia induzida por bactérias está normalmente associada a um aumento de Escherichia, Streptococcus e bactérias orais; as infeções virais geram uma redução menos pronunciada dos anaeróbios comensais no intestino (maior abundância de Bifidobacterium); a diarreia induzida por giardia está associada a uma diminuição de Gammaproteobacteria e a um enriquecimento em Prevotella.
Perturbação de uma microbiota anteriormente estável e funcionalmente completa.9
A comunidade de microrganismos – bactérias, vírus, fungos (incluindo leveduras) e parasitas – que habitam o intestino.10
CÍRCULO VIRTUOSO: QUANDO A MICROBIOTA INTESTINAL OFERECE PROTEÇÃO
Os mecanismos através dos quais a microbiota intestinal proporciona resistência à colonização podem ser tanto diretos como indiretos. A microbiota inibe diretamente os agentes patogénicos diarreicos, principalmente através da competição por nutrientes, mas também limitando de várias formas o crescimento dos agentes patogénicos diarreicos: segregando bacteriocinas (péptidos antimicrobianos), estruturas inibitórias dependentes do contacto celular (sistema de secreção tipo VI), produzindo moléculas que reduzem a virulência dos agentes patogénicos, etc.
A microbiota também inibe indiretamente os agentes patogénicos da diarreia através dos seus efeitos no hospedeiro: promovendo a manutenção da barreira intestinal e estimulando tanto o sistema imunitário inato como o adaptativo.8
COMO TRATAR A DIARREIA INFECIOSA?
A maioria das infeções intestinais é autolimitada nos indivíduos imunocompetentes. No entanto, alguns doentes (com desidratação grave, doença de maior gravidade, febre persistente, fezes com sangue, imunossupressão, etc.) requerem uma investigação diagnóstica específica. Isto pode incluir uma contagem sanguínea completa, uma avaliação da creatinina e dos eletrólitos, verificação da presença de leucócitos e lactoferrina nas fezes, coprocultura, bem como testes de C. difficile, PCR, pesquisa de parasitas e ovos, endoscopia e imagiologia abdominal11. A diretriz do American College of Gastroenterology (ACG)12 fornece recomendações para o diagnóstico e tratamento de doentes adultos que apresentem diarreia aguda de provável etiologia infeciosa (Figura 2). A investigação clínica em crianças baseia-se nos mesmos princípios.23 Em 2023, as Diretrizes Globais da Organização Mundial de Gastroenterologia (WGO) incluíam probióticos na prevenção e tratamento de algumas diarreias infeciosas.57.
Diretrizes Globais da Organização Mundial de Gastroenterologia (WGO), 2023
Tratamento da diarreia aguda: “a administração oral [de algumas estirpes probióticas] encurta em cerca de 1 dia a duração da doença diarreica aguda em crianças”.57
Prevenção de:
- diarreia aguda: “os probióticos fazem provavelmente pouca ou nenhuma diferença com diarreia que dure 48 horas ou mais”.
- diarreia associada a antibióticos: "os probióticos podem ter um efeito moderado na prevenção da diarreia associada a antibióticos em crianças, adultos e idosos".
- diarreia por Clostridioides difficile: "os probióticos são eficazes para prevenir a diarreia associada a C. difficile em pacientes a receber antibióticos."