Os fagos que vêm em socorro das infeções multirresistentes?
Com o aparecimento da resistência aos antibióticos, os bacteriófagos fazem o seu grande regresso. Estes vírus da microbiota intestinal poderiam, entre outras coisas, tratar de modo mais focado, as infeções multirresistentes. Um artigo da Nature Reviews Gastroenterology& Hepatology revê a história, o futuro e os desafios da fagoterapia.
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Sobre este artigo
Os bacteriófagos ou “fagos” são as entidades biológicas mais abundantes e variadas da Terra. Predadores naturais das bactérias, eles são omnipresentes no solo, nos oceanos... e na microbiota intestinal humana, onde são o tipo de vírus dominante. As disbioses bacterianas intestinais associadas a patologias gastrintestinais como na doença de Crohn ou a síndrome do intestino irritável, são acompanhadas de modificações na composição destes vírus.
Pedra angular do moderno arsenal terapêutico, os antibióticos salvaram milhões de vidas. Por outro lado, a sua utilização excessiva e por vezes inadequada pode levar ao aparecimento de múltiplas formas de resistência dos microrganismos. Todos os anos, a Organização Mundial de Saúde (OMS) organiza a Semana Mundial de Conscientização sobre a RAM (WAAW) para aumentar a sensibilização para este problema de saúde pública. Leia a página dedicada.
Resistência aos antibióticos: a microbiota em primeiro plano
Cem anos mais tarde, o regresso sob os holofotes
Desde a década de 20, experiências sobre os fagos para avaliar o seu potencial de tratamento, produziram alguns resultados promissores em pacientes com shigellose, disenteria e cólera. Esta (sidenote: Summers WC. The strange history of phage therapy. Bacteriophage. 2012 Apr 1;2(2):130-133. ) foi abandonada com a chegada dos antibióticos nos anos 40. Embora alguns testes, infelizmente mal documentados, ainda tenham continuado nos países da Europa Oriental, os bacteriófagos foram colocados em segundo plano. Porém, as recentes preocupações sobre as infeções multirresistentes, assim como o acumular de conhecimentos sobre o impacto dos antibióticos no equilíbirio da microbiota intestinal, originaram novos estudos sobre a fagoterapia. Como cada espécie de fago tem, geralmente, por alvo uma única espécie bacteriana, estes vírus poderiam trazer uma solução “precisa” onde os antibióticos de largo espectro são uma preocupação. Entretanto, apesar de suscitarem grandes esperanças, os fagos ainda não são um tratamento autorizado pelas autoridades de saúde (salvo no caso de exceções muito raras).
O que é a Semana Mundial de Conscientização sobre a RAM?
Todos os anos, desde 2015, a OMS organiza a Semana Mundial de Conscientização sobre a RAM (WAAW), que tem como objetivo aumentar a sensibilização para a resistência aos antimicrobianos a nível global. Realizada entre 18 e 24 de novembro, esta campanha incentiva o público em geral, os profissionais de saúde e os decisores a utilizarem cuidadosamente os antimicrobianos, a fim de evitar o surgimento de uma maior resistência aos antimicrobianos.
Resistência a antibióticos, disbiose, direcionamento terapêutico...: múltiplos potenciais
(sidenote: Schooley RT, Biswas B, Gill JJ, et al. Development and Use of Personalized Bacteriophage-Based Therapeutic Cocktails To Treat a Patient with a Disseminated Resistant Acinetobacter baumannii Infection. Antimicrob Agents Chemother. 2017 Sep 22;61(10):e00954-17. ) de caso chamou a atenção: um paciente diabético de 68 anos, infetado com uma bactéria multirresistente (Acinetobacter baumannii) e a sofre com uma pancreatite, recuperou a saúde em 5 meses graças à fagoterapia, após vários tratamentos infrutíferos com antibióticos. Outros sucessos foram relatados com infeções por (sidenote: Jennes S, Merabishvili M, Soentjens P, et al. Use of bacteriophages in the treatment of colistin-only-sensitive Pseudomonas aeruginosa septicaemia in a patient with acute kidney injury-a case report. Crit Care. 2017 Jun 4;21(1):129. ) e (sidenote: Dedrick RM, Guerrero-Bustamante CA, Garlena RA, et al. Engineered bacteriophages for treatment of a patient with a disseminated drug-resistant Mycobacterium abscessus. Nat Med. 2019 May;25(5):730-733. ) , com a esperança de alternativas promissoras para o tratamento de bactérias multirresistentes. A fagoterapia como modulador da microbiota intestinal também interessa aos cientistas. Um estudo em ratos mostrou que um tratamento com fagos para a Enterococcus fecalis, bactéria associada a um mau prognóstico no caso da hepatite alcoólica, poderia levar à melhoria da doença.
Outras utilizações potenciais dos fagos são atualmente apontadas, sobretudo para a medicina de precisão. Estes fagos permitem o transporte de medicamentos anticancerosos ou de antibióticos potentes para uma área precisa do corpo, permitindo, assim, aumentar as doses e diminuir a toxicidade do tratamento nos tecidos vizinhos.
A procura de respostas para os desafios da utilização clínica
A investigação deve, a partir de agora, responder às numerosas perguntas da prática clínica. A fagoterapia é sempre segura? Pode substituir um tratamento com antibióticos? Quais são o modo de administração e a dose corretos? Qual e o efeito a longo prazo sobre a microbiota e a saúde em geral? Segundo os autores, são necessários ensaios clínicos aleatórios em duplo cegos e controlados com placebo para legitimar a fagoterapia, uma prática secular que poderia abordar os vários desafios da medicina atual.
Apresentamos-lhe o Professor Sørensen, galardoado com a Bolsa Internacional 2022 da Biocodex Microbiota Foundation.
A sua equipa foi pioneira num estudo ambicioso sobre o resistoma de 700 crianças que permitirá um avanço na compreensão da evolução e disseminação da resistência antimicrobiana no intestino humano dos primeiros anos de vida.